5.11.09

As rosas não falam...

aquele dia saí da pensão para ir ao novo emprego. eu nunca tive muitas ambições, nunca quis ser rico, pensava simplesmente numa casa de dois quartos, quintal para fazer um churrasco de domingo, minha mulher, dois filhos e um cachorro. eu batalhava por isso. estudei, me formei, troquei de cidade e, agora, tinha o emprego que me pagaria o que eu julgava justo. eu estava feliz e com o coração em paz até entrar no escritório novo.

ela sentava na mesa do fundo, tinha longos cabelos dourados, olhos penetrantes e um sorriso simpático, espontâneo e bonito o suficiente pra enganar um babaca com o coração em paz. eu, por exemplo.

na segunda semana no escritório nós saímos. bebemos, conversamos e tudo acabou numa cama redonda, com um colchão velho forrado com courinho marrom num motel de quinta.

no dia seguinte mantivemos as aparências de sempre. não almoçamos juntos, mas saímos à noite. e essa rotina se repetiu excitantemente por três longos meses. era uma paixão fervorosa, quente, sincera, bonita. eu cheguei a pensar que frutificaria, mas ela tirou férias, não deu sinal de vida e quando voltou, me chamou pra conversar.

contou que estava noiva, que iria se casar e que queria manter o juízo, ter uma relação saudável e uma família feliz. sorte a dela. eu passei três dias sem dormir.

tentei manter o controle, mas sentia raiva dela. todos os sorrisos que ela me dava me irritavam. seus olhares me feriam, sua voz me ensurdecia e eu sequer conseguia responder o "bom dia" que ela me dava.

antes de surtar completamente, a chamei pra conversar.

"não me olhe mais", eu disse.

"eu tento evitar, mas não consigo."

"consegue. você evitou tantas outras coisas, me olhar é muito mais simples."

"eu te fiz muito mal, me sinto mal por isso..."

"sente sim... por isso saíamos todas às vezes sem culpa alguma..."

"não fala assim... se tivesse algo que eu pudesse fazer pra reparar meu erro eu..."

"tem algo sim", interrompi. "mesmo quarto, mesmo motel, hoje às onze."

"eu... ok, eu passo."

antes de me preparar psicologicamente para o encontro, comprei uma garrafa de vodca, energéticos, cigarros, dois CD's do Chico, incenso e aquele veneno pra rato. passei na floricultura, comprei rosas colombianas vermelhas e fui pro nosso quarto.

arrumei tudo como queria, acendi o incenso, me servi um copo grande com muita vodca e um pouco de energético, coloquei o CD do Chico e escrevi numa folha em branco:

"se há algo que pode te salvar, é a honestidade. se amas a outro não deverias vir. veio, traíste e pagarás para que eu a esqueça."

ela veio. falou, falou, falou e bebeu, bebeu, bebeu e trepou, trepou, trepou e dormiu.

eu acordei mais cedo e pedi o café da manhã: suco de laranja, torradas e salada de frutas - o que ela gostava. tomei um banho me troquei e antes de sair despejei o tal do veneno na jarra de suco. deixei as rosas com o cartão na recepção e a recomendação ao velho recepcionista que entregasse a ela quando ela passasse por lá. ele sorriu, disse que eu era romântico, eu disfarcei minha vontade de mandá-lo à merda, paguei a conta e saí.

parei na padaria do outro lado para tomar o meu café: uma lata de guaraná antártica, um pedaço de torta de frango, café preto e marlboro. duas longas horas mais tarde, a vi saindo.

os cabelos molhados, seios perfeitos soltos na blusa de seda vermelha, sardas espalhadas pelos ombros, aquele rabo escultural numa saia branca, os pés num salto alto, o buquê de rosas numa mão e o papel na outra.

senti o cheiro de desespero do outro lado da rua. paguei minha conta e a vi estendendo a mão pra dar sinal pra um táxi. atravessei a tempo de vê-la cair. as rosas na calçada, o papel amassado numa mão, a outra apertando a garganta. a olhei nos olhos. olhos arregalados, gritando algo que não saia de jeito nenhum. fechei os meus e quando abri, os dela já não brilhavam mais.

"não houve salvação", disseram no trabalho. os colegas se reuniram e foram ao velório, depois ao enterro. eu disse que ia, mas mudei de idéia e fui pro quarto do motel de sempre. pelas minhas contas, eles devem estar baixando o caixão agora.

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